A obra de 1977 traz o caráter experimental e inovador na literatura, como as diversas sugestões de títulos que aparecem na primeira página do romance, o relato a partir do escritor-personagem, “vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S.M.”, o esmiuçar do processo de escrita. “Mas e eu? E eu que estou contando esta história que nunca me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça? Fico abismado por saber tanto a verdade. Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro.”
Este livro da autora me fez entender porque é tão celebrada, já tinha lido outros como Perto do coração selvagem e vários de contos, porém este me tocou profundamente pela personagem que criou, “o que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito”.
Além da descrição imersiva de Macabéa com sua feiura física e desaventuranças, além da raiva que me atinge com o Olímpico e com a certeza de que existem outros como ele por aí: o que me revira é a criação de uma personagem que não se questiona, somente vive inspirando e expirando, sem se aperceber do seu viver ralo. E mesmo assim a escritora consegue revelar profundeza e força com suas palavras. “A quem interrogava ela? A Deus? Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um não na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se apresente e a diga, estou há anos esperando.”
A minha parte preferida é esta: “Tanto estava viva que se mexeu devagar e acomodou o corpo em posição fetal. Grotesca como sempre fora. Aquela relutância em ceder, mas aquela vontade do grande abraço. Ela se abraçava a si mesma com vontade do doce nada. Era uma maldita e não sabia. Agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar: eu sou, eu sou, eu sou. Quem era, é que não sabia. Fora buscar no próprio profundo e negro âmago de si mesma o sopro de vida que Deus nos dá.”
E o sopro de vida é o que basta.
Um ótimo 2025 para todos nós!
Magda Medeiros