Salvar o Fogo chegou com grandes expectativas após o estrondoso sucesso de Torto Arado, a primeira obra do autor. O livro apresenta uma narrativa que se desenvolve em Tapera do Paraguaçu (interior da Bahia), onde uma comunidade de origens afro-indígenas convive sob a sombra da Igreja Católica, herdeira secular de um poder territorial e simbólico. Luzia, a personagem central, é uma lavadeira estigmatizada, vista como bruxa, enquanto cuida do irmão Moisés. A trama transita entre passado e presente, fundindo o real e o fantástico para explorar lembranças e conflitos geracionais.
O que mais me marcou na obra foram as relações familiares e os laços de afeto que, embora quase inexistentes nas primeiras passagens, vão se delineando pouco a pouco à medida que as complexidades de cada personagem vêm à tona. Raras vezes expressos em palavras, esses sentimentos surgem sobretudo nos gestos, o vocabulário possível para eles: “eram os gestos a substituírem as palavras de um vocabulário onde verbos como amar inexistiam”. Na parte do retorno de Maria Cabocla, irmã da Luzia, este trecho explica bem isso: “Não houve abraço nem beijo porque não existiam cumprimentos como esses entre eles. Eram hábitos que agora viam nas telenovelas, embora ela achasse bonito uma mãe beijar o filho. Mas não sabia como demonstrar afetos diante da rudeza com que tinha conhecido a vida. Quem sofreu o tanto que sofremos, constatava, não dá importância a essas frescuras. Afeto era roupa lavada, comida na mesa e união contra as tormentas. Resistir como família era a maior prova de bem-querer.”
Também me trouxe entrelinhas a relação da Luzia com a Zoraide, uma mulher que enfeitiçava os homens se amasiando com um e com outro e talvez até com o pai de Luzia, “uma mulher pode, ela ensinava para outra. E falava com sua presença, ofendendo as mulheres. Falava com a boca pintada, as unhas grandes e vermelhas. Me dizia coisas mesmo que não olhasse para mim, mesmo que não soubesse meu nome. Me dizia à alma o que eu nunca conseguiria revelar”.
O trecho que mais gostei foi esse: “Passariam pelas farpas do arame, lanhariam a pele, rasgariam um pouco mais as vestes. Mas não se sentiam derrotadas. Pelo contrário: sem que dissessem palavra, experimentaram a força sem nome que só os que se consideram vivos conseguem sentir.” Estas frases estão entre as passagens mais bem construídas pelo autor, ao retratar a cena em que desistir de plantar as manaíbas parecia ser o único caminho, porém mesmo sabendo que não obteriam o sucesso na empreitada, o fato de estarem ali, Luzia e Maria Cabocla, juntas, se apoiando, era o que realmente importava.
Beijos,
Magda Medeiros