Um rio chamado tempo, uma casa chamada Terra- Mia Couto

“Sou como a palavra: minha grandeza é onde nunca toquei.” (Avô Mariano)

Esta é a epígrafe do último capítulo e me trouxe as entrelinhas de uma imensidão que não se possui nem se controla, mas se encontra no mistério, na ausência, no que ainda não se conhece. O que para mim reflete a escrita de Mia Couto, um convite para o leitor percorrer um território onde as palavras assumem papéis diferentes do tradicional (como em sozinho-me, intransitiva lágrima, ato descontínuo) e conduzem imagens de sonhos.

Marianinho retorna à ilha de Luar-do-Chão para velar o avô que não se sabe se está vivo ou morto, assim se inicia o romance, neste cenário em suspensão. E aos poucos vão sendo introduzidos os demais personagens, com nomes que dizem muito sobre eles, como Abstinêncio magro por timidez, Admirança e sua beleza voluptuosa, Ultímio e tantos outros, inclusive o próprio avô, Dito Mariano, o dito sobre o qual começou o enredo. O autor nos desafia com o realismo mágico onde se entrelaça a cultura moçambicana, numa prosa rica em poesia, jogos de linguagem e sabedoria ancestral. É um romance de travessia e de reflexão: “Acreditara que a razão desse sofrimento era uma única e exclusiva: o colonialismo. Mas depois veio a Independência e muito da sua despertença se manteve. E hoje comprovava: não era de um país que ele era excluído. Era estrangeiro, não numa nação mas no mundo”.

A escrita alterna cartas do avô e sua forma de registro já é do universo mágico, rolando as frases e nos inteirando das situações, como neste trecho final: “Meu neto, 

Agora sabe onde me visitar. Já não necessito de lhe escrever por caligrafada palavra. Falaremos aqui, nesta sombra onde ganho dimensão, corpo renascendo em outro corpo. Você, meu neto, cumpriu o ciclo das visitas. E visitou casa, terra, homem, rio: o mesmo ser, só diferindo em nome. Há um rio que nasce dentro de nós, corre por dentro da casa e desagua não no mar, mas na terra. Esse rio uns chamam de vida”. 

Ler este livro para mim precisa ser feito aos pouquinhos, como goles de beleza e de sentimento que a escrita como arte pode nos surpreender. Não se ater a entender tudo e sim a ser invadido pelo sensorial e caminhar com o luto e a identidade. “Nos quartos, nos corredores, nas traseiras se aglomeram rostos que, na maior parte, desconheço. Me olham, em silenciosa curiosidade. Há anos que não visito a Ilha. Vejo que se interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais do que isso: irreconhecem-me. Pois eu, na circunstância, sou um aparente parente. Só o luto nos faz da mesma família.”

O meu trecho favorito foi esse: “Enfim, de minha alma restou o quê? Um amontoado de saudades. Minha alma é um ferro-velho, na sucata do mecânico João Celestioso. A saudade é uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde acreditávamos limpar, estamos semeando nova ferrugem.”

A casa, a terra e o tempo funcionam como personagens. São elementos vivos, que respiram, guardam histórias e exigem que os que retornam encarem o que foi calado.

Adentre um lugar onde o tempo é um rio e onde tudo pulsa.

Beijos,

Magda Medeiros

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